Mas parece que o túnel só estará pronto daqui a dez anos. Entretanto, e enquanto esperamos, podemos sempre ir aferindo a urgência na conclusão do projecto através deste vídeo e de outros igualmente ilustrativos.
Para evitar perder os sentidos vou-me tentando concentrar em qualquer coisa como escrever aleatoriamente o que me vier à cabeça. Estou quase a asfixiar, mas insistem na infalibilidade deste método obscurantista que consiste em deixar de respirar para parar os soluços. Sinto o meu colega a olhar para mim de lado - não é por mal, é a perspectiva que lhe é dada - tentando perceber se a coloração roxa no meu rosto e os olhos esbugalhados a fixarem com demência o monitor estarão de algum modo relacionados com os barulhinhos agudos que vou soltando sem razão aparente. Conclui que sim, descansando a sua racionalidade por um lado mas não deixando de se sentir inquieto por outro, dada a imprevisibilidade dos comportamentos humanos à beira da morte.
São quase cinco da tarde e finalmente anunciam que o prédio tem todas as inundações controladas. Os meus pés ainda estão gelados, mas as meias parecem finalmente estar secas. Já raramente se ouvem sirenes dos bombeiros na rua. Um dia excepcionalmente agradável, este.
Havia pó, uma muito densa nuvem de pó e, dentro do pó, a casa. Num início de tarde de extremo calor o vento desfaleceu e pôde-se finalmente ver as pereiras que ladeavam a escadaria exterior do solar, assim como os três cães presos a elas por correntes, mortos de fome e sede. Foi nesse preciso momento que chegámos. De repente, estávamos lá, como aparições sobrenaturais, estáticas, de pernas e braços entreabertos, ombros retesados, lado a lado. Os cães já não ladravam há uns dias, mas assim que nos viram levantaram-se num salto e assassinaram-nos com o olhar. Começaram a ladrar furiosamente, espumando aos cantos da boca, escorrendo raiva pelos caninos, e apesar de ser incerto se nos consideravam comida ou cruéis, tive medo pelas duas razões. Em todas as casas de que não me esqueci há uma figueira. E eu que nem gosto de figos. Nesta também. Entrei por debaixo dela, que envolvera o portão há muito, ou o espaço onde havia o portão de ferro forjado, agora caído sobre as raízes que desconjuntaram o muro onde se fixavam as charneiras. Nunca tirei os olhos dos cães, que davam esticões tresloucados às correntes, e eu não sabia quanto mais elas iam aguentar. Mas avancei. Avançámos, tu um passo atrás de mim. Se se soltassem ficaríamos retalhadas em segundos. Não havia para onde fugir. Não tínhamos a chave da casa e sabíamos que não havia ninguém para nos abrir a porta. Não conseguiríamos subir à figueira a tempo, quanto mais alcançar o carro, parado lá em baixo, no princípio do acesso. Foi então que levei o primeiro tiro. Atingiu-me no antebraço esquerdo. Voltei-me com a força do impacto e dei de caras com os teus olhos emancipados das órbitas pelo choque e pela surpresa. Tentaste amparar-me, proteger-me. Acompanhaste-me na descida até ao chão. Deitei-me e tu apoiaste-me a cabeça no regaço. Os cães calaram-se. O velho apareceu, com a espingarda apontada a nós. Ninguém dizia nada. Não me doía, mas queimava. Silêncio. Silêeencio... Não. Um telefone tocava. Tocava. Tocava. O velho também ouvia. Voltou lentamente a cabeça na direcção do som, mas não a arma. Olhou-me de novo. E BANG! Estremeci violentamente, tentando ao mesmo tempo perceber onde este me tinha atingido. Dobrei-me como uma mola e fiquei sentada. Depois de recuperar o fôlego, sequei a testa com as costas da mão esquerda e desliguei o despertador com a direita.