Segunda-feira, 23 de Junho de 2008
Dantes, em regra, todos os desejos que pedia a uma estrela cadente ou quando trincava uma vela do meu bolo de anos ou a pestanas que apertava com força entre o indicador e polegar se realizavam.
Um dia deixou de acontecer.
Segunda-feira, 28 de Janeiro de 2008
Dois irmãos discutem sob o olhar cansado da mãe, numa carruagem de metro, ao fim do que aparenta, no rosto dela, ter sido um muito longo dia:
- Tu és um chato e um bebé chorão!
- Oh mãe, ele chamou-me bebé!!
Bebé. "Chato" pode ser, não lhe faz mossa a tentativa de insulto, "chorão" é tão flagrante que não adianta negar. Mas bebé não. Ele quer ser maior. Como em todas as ilusões, ele quer ser algo que desconhece, mas que associa a um degrau acima na escala do poder.
Não sabe o que o espera.
Segunda-feira, 26 de Novembro de 2007
Numa concorrida bilheteira lisboeta:
- Filho, vamos ao circo?
- Oh, mãe, não!
- Mas porquê?!
- Porque é muito, muito assustador.
Tirou-me as palavras da boca. E eu tenho 35 anos.
Terça-feira, 3 de Julho de 2007
Era um dia chuvoso que intensificava os odores e tornava o ambiente triste e poético. Mesmo ao meio-dia, os candeeiros a óleo continuavam acesos, fazendo parca frente a um céu de chumbo que se sustinha ameaçador um pouco acima das nossas cabeças. Os planos passavam por ir dar uma volta pelas redondezas, mas o táxi faltou e o tempo estava tão agreste que resolvemos abrigar-nos um pouco no único café aberto, aliás, o único café existente, que era também pensão, restaurante, e provavelmente a desoras, resguardo para encontros íntimos nos quartos do primeiro andar, mas isto pode ser só uma provocação do meu imaginário.
No chão do café saltavam sapos nos cantos contra as paredes, buscando uma saída que teimava em não se lhes revelar. Desejei que os tirassem dali, que me metiam um asco incontrolável, embora não parecessem incomodar mais ninguém e até divertir muito a minha irmã, que os caçava à paulada com um cajado que tinha tirado não sei de onde.
Um homem magro, muito moreno e de faces chupadas, vestindo um capote cinzento com uma pele de coelho à volta do pescoço acenou-nos de uma mesa e o meu pai disse-nos que aquele era o António, dêem-lhe um beijinho, filhas, o António e a Margarida fazem filmes de cinema. As bocas abriram-se-nos ligeiramente quando os olhos estacaram nuns aparelhos espalhados pelo chão aos pés da mesa. Máquinas de filmar, cabos e tripés, coisas que só tínhamos visto na televisão. Aquilo aliás, era com o que se fazia a televisão.
Só muito mais tarde me apercebi quem eram o
António Reis e a
Margarida Cordeiro, que se cruzaram diariamente connosco durante aqueles dias na escada da casa de Bemposta, sorrindo, fazendo-nos festas nas cabeças como as faziam aos cães, ou ignorando-nos por completo, enquanto dirigiam as filmagens de “
Ana”, considerado entre os 25 melhores filmes do último quarto do século XX.
Creio, aliás, que após esse encontro, não saímos mais das escadas, eu e a minha irmã, esse corredor fascinante, por onde passavam os actores, os técnicos e outros desconhecidos, subiam e desciam holofotes, se fumavam os cigarros da concentração e se discutiam cenografias, técnicas de som e planos artísticos.
Nessa película se entrevê esta casa de que vos falo, esta terra inóspita, e se é presenteado com a poesia visual da dupla Reis / Cordeiro, essa gente ilustre de um lirismo tão tocante quanto era profundo o seu amor a Trás-os-Montes.
Hoje, a feérica iluminação pública, os transportes, as auto-estradas e toda essa máquina que é o progresso terão alterado aquela paisagem para sempre e feito bem às populações antes entrincheiradas no isolamento, mas às minhas memórias devastá-las-iam, pelo que não quero, não vou, não volto. São minhas e gosto delas assim, enevoeiradas, húmidas, a cheirar a fumo de lareira antiga, com sapos a saltar-me aos pés, com terror dos cães prontos a atacar-me ao virar de cada esquina, cheias de fantasmas e medos e risos e fábulas. Passaram três vertiginosas décadas entretanto, anos que mudaram tudo, todas as perspectivas, todas as vivências. Mas dentro de mim, num canto recôndito, aquele mundo ainda existe.
António Reis
António Reis com Marguerite Duras
Reis dirigindo as filmagens de "Ana"
(fotos roubadas
aqui)
Quinta-feira, 28 de Junho de 2007
- Convinha passarmos numa farmácia.
- Porquê, de que é que precisas?
- As miúdas estão cheias de piolhos...
- ...
Foda-se, se isso se sabe lá em casa!
- Pois...
Esta foi a conversa entre o meu pai e o amigo, no tal Mercedes que iluminava a noite em que chegámos a Bemposta. Disto já não me lembrava, e foi o meu pai, o único dos dois que ainda é vivo, que agora mo recordou. Para um(a) miúdo(a) naquela época, ter piolhos ou não ter não era nada de extraordinário, à excepção do incómodo da coçadeira. Isto porque a vida das crianças era na rua enquanto os pais estavam a trabalhar e a rua era uma instituição, um mundo misturado, uma experiência, uma escola, um passeio de ricos com pobres das barracas e com as classes do meio, onde, no entanto, as posses relevantes de cada um eram practicamente as mesmas; calçado e roupa, melhor ou pior, uma bola aqui, uma bicicleta ali, mas acima de tudo, os dois brinquedos mais fantásticos que conheci: tempo e imaginação.
Em Bemposta acordámos na manhã seguinte, numa cama grande, os três, eu, a minha irmã e o meu pai, num quarto do andar de cima. Os sinais de luta para escapar ao banho mata-piolhos na madrugada anterior ainda eram evidentes. Estava tudo num pandemónio, as roupas de viagem espalhadas por toda a divisão, ainda húmidas, secando nas costas das cadeiras.
Não havia água canalizada nem luz eléctrica. A higiene pessoal fazia-se sobre bacias. Havia sim, pedras nas paredes, escuras e amontoadas camadas graníticas, aglomeradas, creio, pela mesma mistura de palha e esterco que cobria, lá fora, o chão. Cheiravam a merda. Tudo cheirava a merda. Eu cheirava a Quitoso, que vai dar ao mesmo.
Depois das apresentações à matriarca, que nos fez torradas numa lareira onde eu cabia em pé e nos ofereceu o leite mais nojentamente gordo que tive de ingerir em dias de vida, calçámos as galochas para sair. Sim. Galochas. Quem se lembra delas em apenas duas variantes ponha o dedo no ar. As minhas eram azuis escuras com uma grossa sola amarelo-torrado e as da minha irmã eram vermelhas com sola branca.
Assim que saí à rua, olhando para todos os lados menos para onde devia, senti uma coisa estrebuchar debaixo do pé. Pisei um sapo, que em parte se desfez numa viscosidade verde-clara. Era o que faltava para vomitar o leite ali mesmo, por cima das botas do meu pai, que começava a abeirar-se de um ataque de nervos.
(continua)
Terça-feira, 19 de Junho de 2007
Querido blogue,
Ainda na sequência do meu aniversário, ontem fui jantar a casa dos meus pais, que estavam por terras de Espanha na devida data.
Entre memórias de sabores de infância, odores e lugares, acabou por se resgatar do passado uma viagem que fizemos a Trás-os-Montes no início dos anos 80.
Só de pensar nisso invade-me um sorriso incontrolável próprio de quem contempla uma preciosidade que é única e sua.
Hoje tenho terror de voltar a essas paragens, decerto consumidas pelo alcatrão, onde antes só havia, por entre as casas, a terra sulcada pelos carros de bois, atapetados esses corredores por palha e merda que se espalhava aí, não sei por que lógica razão.
Essa terra não sei de que cor era, mas a atmosfera era escura, medieval, invernosa. Muito escura também era a noite em que chegámos, e juro que não me lembro de um breu assim, em que não distinguia a parede do edifício da estação de comboios a três ou quatro metros de mim, nem tão pouco os corpos do meu pai e da minha irmã, a que me uniam as duas mãos, como que num cordão de segurança.
A viagem tinha começado no Porto, provavelmente em Campanhã, e cinco ou seis horas depois, percorrida toda a linha do Douro num comboio puxado por uma automotora a gasolina, a que a cada paragem se abria o motor para deitar água no radiador, provocando um espectáculo quase pirotécnico, ou pelo menos a fumarada assim o anunciava, chegámos a Urrós, concelho de Bragança e literalmente o fim da linha.
No entanto não era esse o nosso destino final. Como que por magia, numa era em que nem telefones fixos estavam à disposição naqueles ermos esquecidos, quanto mais telemóveis, começámos, assim que os nossos olhos se adaptaram à escuridão, a ver surgir dois faróis na estrada, muito longe na noite, ainda nem se ouvia o barulho do motor, e depois mais perto, perto de nós, para nós, num timming perfeito, sabendo que três alminhas esperavam ali aquele transporte, àquela hora, num "truque" de sincronia perfeita a que hoje apetece bater palmas!
O nosso anfitrião chegou nesse Mercedes que nunca esqueceremos por ter sido a primeira limousine que vimos na vida, com três filas de assentos e provavelmente o único táxi da região.
O caminho era agora para a casa de Bemposta, a meros dois quilómetros da fronteira espanhola de Zamora. Essa era uma casa transmontana, robusta e rude, mas grandiosa no seu carisma, e por onde alguns ilustres passaram. Mas isso é outra (parte da) história.
(continua)
Sexta-feira, 9 de Março de 2007
Quando tinha aí uns dez anos, os meus pais levaram-nos a passar uns dias nas Penhas da Saúde, Serra da Estrela, onde uns amigos tinham comprado uma casa. Lembro-me de achar que aquilo era mais uma cabana que uma casa. O telhado era feito de placas de zinco onduladas, que também revestiam as paredes exteriores. Dentro era tudo muito escuro. As janelas, onde as havia, eram mínimas e não deixavam entrar claridade suficiente. O chão era de pedra, não sei se de granito, mas faria sentido que assim fosse. Era muito frio, debaixo dos meus pés, a ponto de me doer pisá-lo descalça, disso lembro-me bem. A decoração das paredes da sala eram cartas militares da região, penduradas como posters em toda a latitude. Essas cartas eram o que mais me atraia naquele sítio exíguo e mal iluminado. Sempre tive um fascínio por mapas. E aqueles, detalhando curvas de nível muito apertadas, lagoas, maciços rochosos e vales glaciares, que depois se traduziam na realidade que se estendia perante os meus olhos nos passeios expedicionários que dávamos, eram particularmente sedutores.
Já não me recordo quantos quartos havia mas suponho que eram três. Onde eu e a minha irmã dormíamos havia apenas um beliche e a divisão era tão estreita que mais parecia um corredor.
Um alpendre protegia a entrada e era apenas suficiente para suportar duas cadeiras desconjuntadas que no entanto todos disputávamos, para melhor apreciar aquela vista inesquecível sobre a lagoa do Viriato. Foi aí, muito antes de me ensinarem na escola, que aprendi o significado desse nome de lenda guerreira e a história dos Lusitanos.
Este fim de semana vou lá voltar, como volto desde então, sempre que posso. Vou matar saudades de alguns dos caminhos que percorri com mais sentido de aventura e que recordo com mais excitação. Depois conto.