Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010

Trilogia poética

 

Em jeito de despedida, aqui deixo, a quem gosta das palavras e de poesia, três poemas de que gosto particularmente.

  

Hoje tudo me dói

 

Hoje tudo me dói, de não saber

como fazer que a chama te incinere,

ou que não tenhas tu nunca existido,

ou fosse eu cego e surdo à tua boca.

Quando souberes que é teu este retrato

feito de cor fingida e falsa luz

irás de porta em porta declarar

que não me conheceste, ouves, ou vês;

que é tudo imaginário; que uma vez

me deste uns dedos de conversa, mas

apenas desejando ser cortês;

que sou um monstro mudo mal cortado

e nem mereço ser esquartejado

pelo pouco que vale o entremez.

 

António Franco Alexandre in "Duende"

 

Adeus

 

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas

em esperas inúteis.

 

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!

Era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

 

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!

E eu acreditava.

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.

 

Mas isso era no tempo dos segredos,

era no tempo em que o teu corpo era um aquário,

era no tempo em que os meus olhos

eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

 

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor...

já não se passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração. 

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

 

Adeus.

 

Eugénio de Andrade

 

Colours

 

When your face appeared over my crumbled life,

At first I understood only the poverty of what I had.

Then it's particular light on woods, on rivers, on the sea,

Became my beginning in the coloured world in which I had not yet had my beginning.

 

I am so frightened, so frightened of the revelations, tears, and excitment finishing.

I don't fight it. This fear is my love. I nourish it who can nourish nothing -

Love's slipshod watchman.

Fear hems me in.

 

I am conscious that these minutes are short and that the colors in my eyes will vanish when your face sets.

 

Yevgeny Yevtushenko

 

Buraco tapado por Cosmopolita às 21:21
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Terça-feira, 3 de Março de 2009

Insones, de José Mário Silva

O José Mário Silva escreveu um poema sobre mim (ele não sabe, mas ele não tem de saber tudo) e isso não pode passar em branco neste blog (na verdade, há um ano ou dois que ando melhorzinha mas suspeito, a avaliar pelas últimas noites, que o problema está de volta).

 

insones

Fumam à janela, o vento frio
desfaz o fumo, os dedos tremem.
Não sabem uns dos outros,
espalhados pela cidade, mas
procuram as luzes ainda acesas
noutras casas. Noite dentro,
o silêncio dos que dormem
é uma afronta, desleixo pueril
de quem consegue ignorar
as facadas do tempo, a areia
entre os dedos, o sobressalto.

 

José Mário Silva, in luz indecisa, Oceanos, 2009, em breve numa livraria perto de si.

Buraco tapado por Citadina às 12:36
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Quarta-feira, 4 de Junho de 2008

Eu esta semana vou acordar sempre assim

Apaixonada por Léo Ferré desde que, em pequena, o ouvi cantar (Louis) Aragon, consegui escolher estes videos, de entre muitos outros que teria postado. Oiçam-no que vale a pena.

 

Les anarchistes

 

La solitude

 

Tu ne dis jamais rien

 

E a propósito, ou talvez não, deixo-vos um poema magnífico de Reinaldo Ferreira:

 

A que morreu às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
Teve a sorte que quis,
Teve o fim que escolheu.
Nunca, passiva e aterrada, ela rezou.
E antes de flor, foi, como tantas, pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
Depois de um saque - antes a deu
A quem lha desejou,
Na lama dum reduto,
Sem náusea mas sem cio,
Sob a manta comum,
A pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar,
Entre «champagne», aos generais senis,
As horas de lazer.
Não quis, activa e boa, tricotar
Agasalhos pueris,
No sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
Num heroísmo branco,
De bicho de hospital,
A aflição dos aflitos.

 

Uma noite, às portas de Madrid,
Com uma praga na boca
E a espingarda na mão,
À hora tal, atacou e morreu.

 

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

 

In: Um Vôo Cego a Nada, 1960.

 

Buraco tapado por Cosmopolita às 11:32
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Quarta-feira, 28 de Novembro de 2007

Porque hoje é Quarta...

Ofereço-vos dois poemas de Eugénio de Andrade.

 

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.
 
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
 
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
 
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

 

 

 

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

 

Buraco tapado por Cosmopolita às 14:01
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Segunda-feira, 5 de Novembro de 2007

Post dedicado aos "homens bons"

... e também, como não podia deixar de ser, às mulheres boas, e a todos os politicamente correctos, independentemente do sexo, credo, etnia, raça, orientação sexual, et cetera.
Para vós, um lindo momento de poesia da boa:

Algumas perguntas a um “homem bom”

Bom, mas para quê?
Sim, não és venal, mas o raio
Que sobre a casa cai também
Não é venal.
Nunca renegas o que disseste.
Mas que disseste?
És de boa fé, dás a tua opinião.
Que opinião?

Tens coragem.
Contra quem?
És cheio de sabedoria.
Para quem?
Não olhas aos teus interesses.
Aos de quem olhas?
És um bom amigo.
Sê-lo-ás do bom povo?

Escuta pois: nós sabemos
Que és nosso inimigo.
Por isso vamos
Encostar-te ao paredão.
Mas em consideração
Dos teus méritos e das tuas boas qualidades
Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com
Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com
Uma boa pá debaixo da terra boa.

(Bertolt Brecht)


E ainda, porque um é pouco e dois é bom, parece:

O Analfabeto Político

O pior analfabeto
é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala,
nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo da vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguer, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.

O analfabeto político
é tão burro que se orgulha
e estufa o peito dizendo
que odeia a política.
Não sabe o imbecil que,
da sua ignorância política
nasce a prostituta, o menor abandonado
e o pior de todos os bandidos:
O político vigarista,
pelintra, corrupto e lacaio
das empresas nacionais e multinacionais.

(Bertolt Brecht)


Gostaram? Eu sei que sim. De nada, sempre às ordens.

Buraco tapado por Cosmopolita às 12:32
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Segunda-feira, 15 de Outubro de 2007

As palavras

Não quero deixar de compartilhar hoje convosco dois poemas lindíssimos de Eugénio de Andrade sobre as palavras.

 

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.


As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

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Buraco tapado por Cosmopolita às 14:48
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Segunda-feira, 16 de Abril de 2007

Para ti, meu amor!

SE TU VIESSES VER-ME...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca
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Buraco tapado por Cosmopolita às 12:07
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Terça-feira, 30 de Janeiro de 2007

Parabéns querida!

És o amor da minha vida.

 

Elegia dum incoerente

Tua Presença
É o todo-inteiro,
Real, verdadeiro,
De que a beleza
É um fragmento;
Tua Presença
Lembra um Mosteiro,
É como um claustro,
Como um convento
Onde se bebe
Recolhimento,
E cada qual
Se sente menos
Preso da Vida
Que a carne tenra
Recém-nascida
Se prende à vida
Pelo cordão
Umbilical.

A tua Ausência
É o todo-inteiro
Real, verdadeiro,
De que o Inferno
É um fragmento;
A tua Ausência
Lembra as galés,
Traz-nos atados
De mãos e pés,
Remando sós
Pelos infinitos
Mares deste mundo,
Seguindo o rumo
Dos Desvairados,
Como proscritos,
Como gafados.
A tua Ausência!
Antes ser cego,
Antes cativo,
Antes ser posto
Num caixão estreito,
Levado à cova
E sepulto vivo.

Tua Presença
É como nave
De Catedral,
Dum goticismo
Tão trabalhado,
Tão requintado,
Que são aladas
As próprias pedras
Das arcarias
Abobadadas,
E os capitéis
Das colunatas
Fogem em bandos,
Em revoadas
Ascensionais,
Para aquele ponto,
Exterior ao mundo,
Pra onde tendem
As catedrais!

A tua Ausência
É um oceano
Glauco e sem fundo
Onde naufragam
Os bens do mundo;
É uma imagem
Tumultuária
Dos Derradeiros
Dias Finais;
É como um campo aberto
Para a pilhagem
Das tentações,
Dos desatinos,
Das abjecções;
A tua Ausência
É cavalgada
Desenfreada
DApocalipse,
É o remorso
De quem celebra,
Com mãos profanas,
Ritos sagrados,
É um telescópio
Das dores humanas

Tua Presença
Dimana graças
De iluminura;
Foi modelada
Num raio fulvo
De luz sidéria;
Tem os caprichos,
As fantasias,
Duma voluta
De incenso em brasa;
Tua Presença
Foi feita à imagem
Das vagas névoas,
Sonhos dispersos
Pelos rutilantes
Rubros gritantes
Da madrugada,
E em si resume
O azul doente
Em que dilui
A macerada
Melancolia
Do Sol poente.
É essência Pura
Do ideal,
É um vitral
Que transfigura
Raios de Sol
Que correm montes
Buscando fontes
Para as calar

Sòmente estou triste,
Pois sei que a Presença
Que eu canto em bravatas
Com coros de latas
E versos quebrados,
Enfim, só existe
Na minha Elegia,
Nas minhas bravatas,
Se um dia tombar.

(Reinaldo Ferreira)

Buraco tapado por Citadina às 09:43
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Quarta-feira, 10 de Janeiro de 2007

"O acto sexual é para ter filhos"

...disse na Assembleia da República, no dia 3 de Abril de 1982, o então deputado do CDS João Morgado num debate sobre a despenalização do aborto.
 
A resposta de Natália Correia, em poema, publicado depois pelo Diário de Lisboa em 5 de Abril desse ano, fez rir todas as bancadas parlamentares, sem excepção, tendo os trabalhos sido interrompidos por isso.
 
Revivamos então esse poema:
 
“Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.”
 
Natália Correia - 3 de Abril de 1982
 
(episódio relembrado via e-mail por um amigo – obrigada Luís).
Buraco tapado por Cosmopolita às 10:38
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